A vida em Santa Maria de Nieva era relativamente tranquila até há uns 5 anos atrás. As pessoas deixavam as portas abertas e os utensílios na rua... e nada acontecia.
Mas depois veio o asfalto: a abençoada e maldita estrada.
Com a estrada vieram os comerciantes da serra e da costa, hispanohablantes, em busca de oportunidades de negócio e fugindo das constantes crises económicas. Para os indígenas, estes são os mestizos.
Claro que ja existia estrada de terra e rotas comerciais que abasteciam as pequenas lojas existente desde a década de 70 e 80, mas o verdadeiro circuito comercial intensificou-se com o asfalto. Hoje em dia, são 6h entre Nieva e Bágua, a primeira vila que se encontra com alguma dimensão quando saímos de cá. A estrada tem imenso movimento todos os dias e o corropio de camiões com fruta, frangos, plátanos, roupas, etc... é constante. O oleoduto da Petro Peru sofreu um acidente há uns anos e desde então os camiões cisterna em grupos de 5 transportam o crude obtido na Amazónia, para alimentar o país.
Os cafés e restaurantes aumentaram, há lojas de tudo e mais alguma coisa. A preços mais caros do que no resto do país, mas esse é o custo da distância.
Dir-se-ia que tudo são rosas, mas a realidade está muito longe disso. Com a estrada veio também o consumo de droga, os roubos, a prostituição e as violações.
O poder da transformação
A Hermana Margarita, uma senhora notável com mais de 80 anos de idade, está em Nieva há 10 anos. É a superior da comunidade das Escravas do Sagrado Coração de Jesus em Santa Maria de Nieva, que se instalou por cá tendo como missão a gestão do Instituto. Esta será certamente a sua última missão e daqui sairá para um merecido descanso em Lima. Margarita tem uma energia contagiante e um dom para a cozinha, de que irei sentir falta quando regressar a Portugal. Em longas conversas fui aprendendo mais sobre a cultura Awajún e em particular sobre a história e evolução de Nieva. Ela tem sido uma observadora privilegiada da última década neste canto da selva.
Quando chegou, existia apenas um restaurante e duas ou três lojitas pequenas. O caminho entre o centro e a Casa das Hermanas era solitário tendo apenas o rio como companhia.
O contacto com as pessoas é difícil e demoramos muito tempo a criar uma relação de confiança e proximidade.
Os Awajún são um povo orgulhoso, com uma mentalidade beligerante e pouco acolhedores a estranjeiros. Até aos anos 70, 80 viveram como se vivia desde sempre. As suas roupas, as casas em que viviam, o modo de cozinhar e transmitir conhecimento aos seus filhos era a mesma há centenas de anos. Mas houve uma coisa a que não ficaram imunes: a chegada do dinheiro (la plata).
Os Incas nunca conquistaram esta zona do Perú, apesar das inúmeras tentativas. As histórias que ouço fazem-me lembrar a resistência dos Gauleses ao poder dos Romanos nas histórias do Astérix.
A triste realidade
Há poucas semanas celebrou-se em Nieva a Fiesta de la Patrona, que por acaso, é Nossa Senhora de Fátima. Houve música pelas ruas, muita comida, actividades desportivas e muita gente nas ruas durante uma semana.
Nessa mesma semana houve registo de 9 violações de jovens mulheres. Os números reais são muito mais altos. Uma funcionária da Municipalidade foi violada por um grupo de homens. Foi transportada de urgência para Bágua e quando regressou identificou um dos seus agressores que trabalhava com ela na Municipalidade. O agressor foi despedido da Municipalidade e houve um pago em dinheiro, esse homem está livre.
Há uns meses um jovem indígena envenenou por ciúme uma jovem, provocando a sua morte. As famílias acordaram um pago em dinheiro, e esse jovem está livre.
As histórias de violações entre professores e alunas jovens são comuns nas comunidades espalhadas pela selva e as famílias resolvem os problemas aceitando um pago monetário.
Nos anos 70 foi implementada uma Lei Nacional que permite alguma autonomia às Comunidades Indígenas para que apliquem as suas leis ancestrais nos seus territórios. Existem apenas 4 polícias para todo este território, que na realidade são meros fantoches sem grande possibilidade de acção. Quem de facto assegura a segurança são milícias indígenas, conhecidas como La Ronda. Estas milícias não seguem a Lei Civil Nacional, mas sim as regras que bem entendem e lhes convem. Há uns meses ocorreu um roubo em casa das Hermanas e levaram um portátil. Chamaram La Ronda para investigar e averiguar e os membros da La Ronda logo pediram dinheiro para "iniciar as investigações"...
Um dos responsáveis do Ministério da Educação, um mestizo natural desta zona, decidiu não renovar o contrato a cerca de 20 professores acusados de violação de alunas. Estes professores indígenas, em conjunto, telefonavam todos os dias para os serviçoes centrais acusando-o ser corrupto. Como não conseguiram o seu objectivo, passaram a ameaçar directamente os responsáveis do Ministério de Educação caso não fossem reintegrados para dar aulas nas comunidades. Ameaças de morte.
Quem tentou mudar as coisas foi despedido... e teve de abandonar Santa Maria de Nieva. Os professores foram novamente contratados.
A alternativa seria o desmoronar do sistema educativo em todas as comunidades indígenas de Condorcanqui.
Nunca desistir
Quando tentamos mudar algo, dizer que está mal, que é injusto... encontramos resistência, má vontade e em caso de insistência surgem ameaças à integridade física.
É difícil permanecer num território com estes problemas e onde a falta de valores é a norma. Os professores do Instituto e outros profissionais chegam com ilusões e cheio de energia para ajudar a desenvolver esta zona e quando se apercebem da realidade, acabam por desanimar e partem de novo. Há uma ONG Peruana que desenvolve um trabalho muito importante com as comunidades nativas, mas tem encontrado tantos impedimentos este ano que todos os trabalhadores decidiram não renovar contrato, e regressar às suas cidades.
De todas as comunidades espalhadas pelo mundo, esta é a comunidade das Escravas do Sagrado Coração de Jesus onde o trabalho é mais difícil e frustrante. Para mim é apenas temporário, pois regressarei a Portugal e ao meu conforto.
Mas elas ficam, permanecem... apesar de tudo.
Agradecem-me o que tenho feito com os jovens do Instituto e após tantos meses já conseguimos ver algum resultado. Mas é difícil... É frustrante...
Queres ajudar-me a permanecer no Perú? Porque preciso de ajuda.
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